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Pan do Rio: Pandemônio - Parte 1

Há algum tempo ando incomodado com o pensamento único que se instaurou na mídia gorda a respeito dos Jogos Pan-Americanos que serão realizados no Rio de Janeiro, em julho de 2007. Queria escrever algo a respeito. Incentivado pelas sugestões de pelo menos dois amigos (Gustavo Menezes e Patrícia Duarte, a quem agradeço), resolvi recolher material para escrever um texto um pouco maior a respeito do assunto. A associação a “pandemônio” peguei emprestada de uma camisa que vi outro dia, usada por um militante do movimento negro; o termo tem sido usado por diversas vozes que protestam contra o Pan - mas, embora vivamos numa democracia, não conseguem se fazer ouvir pelo restante da sociedade, graças à ditadura da mídia gorda.

Este texto tem duas partes. Na primeira, “O buraco negro do dinheiro público”, teço algumas idéias a partir de uma reportagem de capa de Carta Capital, cujo assunto principal é a montanha de dinheiro público saindo pelo ladrão e indo ninguém sabe para onde. Na segunda, “Mídia gorda e Pan: tudo, menos jornalismo” critico outros aspectos, dividindo atenção entre o Pan em si e o que a mídia gorda fala (e, principalmente, omite) sobre ele. A segunda parte será publicada amanhã e traz também uma lista de leituras para entender criticamente o Pan(demônio).

O buraco-negro do dinheiro público

O melhor texto que li sobre o assunto foi a reportagem de capa da revista Carta Capital, escrita por Phydia de Athayde e publicada em fevereiro. Já na capa, anuncia:

“PAN, QUE DESPERDÍCIO!

Os Jogos custarão dez vezes mais que o previsto. E nada sobrará para melhorar a infra-estrutura do Rio”

Um ufanismo exacerbado toma conta das falas a respeito do Pan na mídia gorda, a mesma que não é ufanista nem defende os interesses nacionais quando se trata de questões econômicas, políticas e culturais relevantes. Como se verá, no fim das contas, neste caso a situação não é diferente.

“Por detrás do otimismo repousam, porém, fatos e atitudes capazes de arruinar as pretensões brasileiras de sediar grandes eventos esportivos internacionais. Ou, ainda, fazer com que aconteçam sem que tragam um mínimo de benefícios para o País. A maneira como o esporte é administrado, o descaso com a explosão nos custos e a displicência quanto ao planejamento urbano são alguns desses pontos.“

Em numerosos pontos, o Pan e sua preparação são uma tragédia social: competência dos organizadores, finanças, legado para a cidade, política para o esporte, políticas sociais etc.

Nenhum dos entrevistados pela repórter de Carta Capital respondeu à pergunta sobre a razão para o aumento dos custos. Segundo a matéria, Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), teve a cara de pau de responder: “Que país cumpriu um orçamento inicial?”. Ninguém é obrigado a responder pergunta de jornalista. Responder com outra pergunta, tentando se justificar, é um direito do presidente da entidade. Porém, como se trata de alguém que está gerindo (muito) dinheiro público e o Brasil não é exatamente uma terra em que a população vive bem e o dinheiro sobra, dar uma explicação convincente é uma obrigação.

Nuzman, aliás, preside o COB há 12 anos. Antes, chefiou a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) por outros 20. Segundo a reportagem, “há [no esporte brasileiro] um modelo que facilita a perpetuação de dirigentes”, algo facilmente verificável, visto que numerosas federações e confederações são comandadas por anos a fio pelo mesmo dirigente (futebol em vários estados, confederações brasileiras de natação, basquete, futebol etc.). Alguém acredita que esse apego ao poder visa ao interesse público e ao desenvolvimento do esporte no país?

Há quem diga (ver este texto) que o ministro dos Esportes vai botar a boca no mundo após o evento. Pergunta-se: como ocupante de um ministério (e, portanto, responsável pelo que acontece sob sua chancela) e em nome do interesse público, não deveria ter feito isso agora, para já, para ontem? Não deveria ter socado a mesa e dito: “não vou jogar dinheiro fora” ou “se não foram competentes para orçar a obra, nada garante que serão competentes para realizá-la, e dinheiro público não é para ser posto na mão de incompetentes”? Estou trabalhando aqui com a hipótese mais cândida, ou seja, de que o Pan custa ao governo federal dez vezes mais do que o orçamento original apenas por causa de incompetência.

A reportagem, porém, dá indícios para quem não quiser acreditar na hipótese. Como os responsáveis sequer assumem a incompetência como justificativa, talvez a explicação seja mesmo outra.

Afirma Phydia: “integrantes do COB trabalham em empresas que prestam serviços para o próprio COB”. O COB gere dinheiro público. Perguntas: se fossem membros de algum partido político a ocupar a entidade, a mídia gorda ficaria calada? Consideraria normal tamanha promiscuidade com dinheiro público (ou seja, de todos os brasileiros)? Será que o fato de o presidente do COB ser amigo pessoal do chefe da divisão de esportes da Rede Globo tem algo a ver com o tipo de cobertura feito pela emissora? Para quem não sabe, o “jornalismo” da Globo é: chapa branca do Ministério dos Esportes, do COB, de entidades esportivas e dos clubes - dentre os últimos, muitos sonegam a previdência e não cumprem obrigações trabalhistas; puxa-saco das autoridades; contrário a qualquer tipo de investigação, denúncia ou discussão sobre o papel do esporte no país e a promiscuidade entre entidades esportivas e interesses privados.

Como, neste caso específico, o governo do PT libera verba via ministro do PCdoB para ajudar o COB do Nuzman, a prefeitura do Rio (PFL), o governo do estado (PMDB) e o secretário estadual de Esportes e Turismo (PSDB), para a mídia gorda está tudo ótimo.

O “secretário-executivo do Comitê Gestor das Ações Federais para o Pan-Americano, Ricardo Leyser”, declarou à jornalista que o orçamento inicial do COB foi mal planejado. Ao que parece, o poder público:

a) Não considera problema o orçamento inicial ter sido malfeito e os brasileiros pagarem a conta;

b) Não considera problema destinar dinheiro da União (que poderia ser investido em direitos como educação, saúde, reforma agrária, moradia, saneamento, seguridade social) para suprir “necessidades” que não estavam planejadas e ninguém sabe de onde surgiram (o Comitê Organizador, que tem a obrigação de saber, não divulga);

c) Não considera um problema colocar centenas de milhões de reais de verbas públicas nas mãos dos mesmos dirigentes responsáveis pelo planejamento malfeito e incompetente e pelo gasto das verbas liberadas antes (que ninguém explicou para onde foram).

Em um quadro aterrador como este, o contribuinte pode dar graças pelo fato de o Pan já estar próximo. Caso contrário, correríamos o risco de ver os governos municipal, estadual e federal destinarem, por anos a fio, dinheiro para “as obras do Pan”.

Mas não podemos ser otimistas: os mesmo dirigentes (Nuzman, Teixeira e afins) com o apoio da mídia gorda (babando por verbas publicitárias, inclusive do poder estatal que tanto critica), estão assanhadíssimos com as candidaturas à Olimpíada e à Copa do Mundo.

Afirma Phydia: “(…) só não dá para ignorar que os Jogos Pan-Americanos no Brasil custarão dez vezes mais que o programado”. Infelizmente, dá. A mídia gorda, que deveria informar, não informa, mantendo a população na ignorância.

A culpa dos gastos adicionais, segundo o COB e os representantes dos executivos federal, estadual e municipal, é da candidatura aos Jogos Olímpicos. Gastam-se rios de dinheiro e nada para os transportes. Nada para despoluir lagoas e a Baía da Guanabara. Ou seja, o custo aumenta de forma astronômica e os benefícios para a população apontados no projeto não são realizados. O gasto de tamanha verba dos orçamentos federal e estadual já seria discutível se os beneficiados fossem apenas os moradores de um município (Rio de Janeiro) ou da Região Metropolitana (caso a Baía fosse despoluída e o Metrô chegasse a Niterói e São Gonçalo, por exemplo). Como nem os moradores da cidade do Rio de Janeiro serão beneficiados após a competição, que argumento sustenta a gastança?

Segue Phydia: “Já que o grosso dos investimentos foi para as instalações esportivas, cabe discutir o que será feito delas após os Jogos. A obra mais cara do Pan-Americano é a construção do Estádio João Havelange. Orçado em 166 milhões de reais, já está em 360 milhões. Mas ninguém sabe dizer o que será feito dele depois dos Jogos.” Autoridades entrevistadas na matéria dizem que o estádio “é responsabilidade da prefeitura”.

* * *

Façamos um pequeno exercício de lógica e futurologia com base no presente. Um estádio pode servir para quê? No Brasil, basicamente duas coisas: jogos de futebol e eventos musicais.

No Rio de Janeiro, existem várias casas de show de grande porte. Para shows acima de 10.000 pessoas, há Maracanã, Apoteose, Cidade do Rock, Autódromo, Riocentro e praias (no caso de shows gratuitos), só para citar locais em que foram realizados grandes eventos nos últimos anos. Não são poucos, e a agenda de grandes atrações da cidade está longe de ser intensa a ponto de demandar novos. Pelo contrário: boa parte dos já existentes fica fechado/parado durante vários períodos a cada ano. Portanto, não há necessidade de um novo lugar para realizar shows.

Sobra o futebol. O Rio de Janeiro tem quatro clubes grandes: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Como os clubes são mal administrados e vivem na pindaíba, apenas um deles tem estádio próprio, construído muitas décadas atrás. Com toda a razão, o Vasco manda seus jogos em São Januário, embora volta e meia seja sacaneado e impedido de fazê-lo. Sobram os outros três. A diretoria do Flamengo tem planos de construir um estádio para 30 mil pessoas na Gávea - é só uma proposta e há muita gente contra, com argumentos possantes; pode ser que nunca saia do papel, mas é um dado a ser considerado.

Alguém poderia dizer: “há apenas o Maracanã para três clubes, isso é pouco”. Não, não é, e por razões óbvias. Primeiro, porque quase metade dos jogos disputados por Flamengo, Fluminense e Botafogo se dá fora de casa. Segundo, porque os jogos que sobram (pouco mais da metade: partidas em casa e clássicos) são divididos, a cada rodada, em dois dias: sábado/domingo e quarta/quinta. Terceiro, porque, no Estadual, quando há maior concentração de clássicos e jogos no Maracanã, foram reeditadas, nos últimos anos, as rodadas-duplas - saída inteligente para atrair público e diluir o custo de realização da partida.

Considerando que a oferta e variedade de transportes para chegar ao Maracanã são muito maiores que as do Engenhão, fica a pergunta: vai servir para quê?

Não custa lembrar que, na Alemanha, tem presidente de clube de futebol na cadeia porque roubou dinheiro em obra de estádio para a Copa do ano passado. Enquanto isso, nossos dirigentes são tratados como executivos competentes pela mídia gorda (sócia nos negócios), recebem dinheiro público e ainda posam de estadistas promotores do desenvolvimento e do futuro do país. Que não vão para a cadeia, a gente já sabe, porque enriqueceram graças ao esporte, lícita ou ilicitamente, e têm contatos. Mas pelo menos poderiam sofrer execração pública.

O governo estadual chefiado pela família Matheus, que se dizia popular e se vangloriava de oferecer serviços (direitos?) a R$ 1 para a população, acabou com a geral, único setor barato do estádio. A justificativa apresentada e engolida sem contestação pelos repórteres da mídia gorda é que, para sediar jogos da Fifa, o estádio não pode ter lugares em pé.

Washington Rodrigues, o Apolinho, comentarista esportivo do Rio de Janeiro, foi direto ao ponto algum tempo atrás, dizendo mais ou menos o seguinte: “Se o Maracanã não serve para a Fifa, pior para a Fifa. Ela que vá sediar jogos em outro lugar. O Maracanã é do torcedor do Rio de Janeiro, e sua utilidade é no dia-a-dia, nos jogos dos clubes cariocas, e não uma vez ou outra para receber a seleção brasileira.”

Competições da Fifa, é bom lembrar, são apenas a Copa do Mundo e suas eliminatórias, além dos campeonatos mundiais de categorias de base. Ou seja, nem de perto algo que justifique extinguir o espaço mais popular do Maracanã, expulsando os pobres do futebol e negando-lhes o ato sagrado de comparecer ao estádio para torcer pelo time de coração. Os autores deste crime, porém, não serão punidos pela justiça, nem ficaram malvistos pela opinião pública.

Como lembra a reportagem, nada garante que a tragédia do Pan seja o ponto final (nem o ponto mais baixo) da história. Pode ser que Olimpíada e Copa venham aí. O pior é não termos garantia de que, daqui a sete ou dez anos, o que foi construído para o Pan estará de pé, funcionando e em condições de receber os eventos. Quer dizer, talvez isso não seja o pior. O pior mesmo é que, provavelmente, as competições serão organizadas pelos mesmos dirigentes esportivos e promovidas pela mesma mídia gorda. Pobre Brasil.

* * *

Voltemos a 2003. O Pan de Santo Domingo foi muito problemático por uma série de razões - a principal foi a falta de dinheiro, pois a cidade fica na República Dominicana, país que disputa com o vizinho Haiti a condição de país mais pobre da América.

Ainda que com problemas numerosos e graves, Santo Domingo foi escolhida como sede e conseguiu organizar os jogos. Esse fato, por si só, deveria bastar para que sediar o Pan fosse considerado algo normal - nada extraordinário, nenhuma façanha. Como afirma Phydia: “(…) Jogos Pan-Americanos são tradicionalmente pouco significantes no cenário mundial”. Correto. Campeonatos mundiais de pelo menos umas 10 modalidades são mais relevantes. Campeonatos regionais (de clubes ou seleções) e mesmo nacionais de futebol atraem mais atenção mundo afora. Por aqui, dirigentes e a esmagadora maioria do jornalismo esportivo (sic) da mídia gorda juram que o Pan é a oitava maravilha do mundo. Mas disso falarei adiante.

Tags: democracia, esquerda, sociedade, Violência

Fonte: Rafael Fortes

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