Estou criando mais uma série aqui no Não2Não1 para comentar as principais cantadas e xavecos do cinema. Fui motivado por um post de uma amiga (“Lições de flerte”) e pelos vários vídeos do Fabiano Rampazzo produzidos pelo site iTodas. Esse cara (autor do Manual do Xavequeiro) me parece um verdadeiro pateta, diga-se de passagem. Veja o que ele fala sobre o xaveco inicial do filme Antes do Amanhecer. Ao se dirigir às mulheres, termina de modo profundo: “Você se permite?”. Sorte dele que o vídeo teve apenas 148 visualizações em mais de um mês.
Fico um pouco irritado com essa supervalorização da sedução e conquista. Ao mesmo tempo, eu me divirto com ebooks desse tipo, por exemplo: “Como conquistar mulheres”, do site www.persuasao.com.br. Conquistar é fácil… é a parte mais simples de um relacionamento. O desafio é o que fazer quando se esgotam os tipos de beijos, os restaurantes de comida internacional e as posições sexuais do KamaSutra. O que fazer no oitavo encontro, no quinto ano ou na terceira década? Ainda assim, todas as boas coisas da vida começam em algum ponto, então nada mais natural do que falar em sedução.
Vejo, no entanto, a sedução como um processo de construção de uma história, não como uma evolução do modelo caçador/presa. É claro que uma história pode durar apenas uma noite, com muito desejo, instinto e fúria, mas sedução sem história ou sonho construído não tem graça alguma. O que de bom temos a oferecer ao outro senão um filme, um sonho, um mito?
Nesse contexto, minha idéia de “cantada” ou “xaveco” foge um pouco da visão convencional. Sinto que uma boa cantada não é tanto uma série de frases ou ações quanto uma postura que possibilita o envolvimento e a entrega de ambos. Isso ficará claro logo de cara com esse post, que não fala da ousadia de roubar um beijo, por exemplo.
Para abrir a série, escolhi o último filme que vi. Estreiou na última sexta e está em cartaz em vários cinemas. Meu texto não tem spoilers, então pode ler tranqüilo.
O filme
Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, Kar Wai Wong, EUA, 2007) traz a cantora Norah Jones, Natalie Portman, Jude Law e Rachel Weisz para encenar uma história bastante simples, escrita e dirigida por Kar Wai Wong (de 2046 e Amor à Flor da Pele). Na trilha sonora (que já baixei), além de Norah, temos a gostosa Cat Power (que também aparece no filme), Ry Cooder (que assina a trilha), Cassandra Wilson, Amos Lee e Gustavo Santaolalla, entre outros nomes menores.
Kar Wai Wong é fascinado pelo amor. Ele nos pergunta: “Amor, o que é isso? Como ele se dá? Como ele vive e como o vivemos?”. Sem respostas, é o percurso que interessa. A viagem de Norah, aberta à vida, pelas histórias dos outros, me lembrou das vezes em que participei e convivi perto de amores de amigos, suas alegrias e confusões. Olhava cuidadosamente para eles e descobria minha própria energia, minha vontade de fazer diferente ou igual. Neles, eu via um amor (e também uma confusão) que é impessoal, usufruído por todos, sem dono.
A falta de pretensão do filme é a medida de sua calma; seu andamento, um ensinamento a qualquer amante. Todo aspirante a homem deveria assistir a filmes assim, desses que parecem que não vão a lugar algum, sabe? “Não tenha pressa, respire tudo e todos, saiba que o próximo momento não será nem um pouco diferente desse agora“, sussurra cada cena.
A cantada
O xaveco supremo de Um Beijo Roubado é simples, sem falas, sem esforço. Jude Law faz apenas uma coisa com Norah Jones: ele fica. Não vai atrás dela, não viaja, não reage, não larga seu trabalho. Além de ligações desesperadas, ele não se move. Poucos homens sabem da existência dessa cantada invertida. A cantada imóvel.
É comum olharmos para os movimentos femininos e tentarmos enlaçar a mulher desejada, partir para cima, interrompê-la de alguma forma. É claro que render e desarmar uma mulher é também uma delícia, mas muitos confundem rendição com controle. Não é fácil sorrir para as andanças de uma mulher e deixar preparada a torta de blueberry. Falta um pouco de paciência às relações contemporâneas. Paciência que pode ser uma surpresa desafiadora às mulheres pelo fato de elas não entenderem como um homem pode dizer: “Linda, pode ir, apaixone-se e desapaixone-se por mim e por outros, viaje, sinta os sabores do mundo, bata cabeça, venha e se vá”. O mistério contido nessa postura talvez deixe uma mulher ainda mais atraída e envolvida. Talvez ela se sinta totalmente acolhida, em casa, dentro desse olhar.
Um homem que não dá chiliques, que não surta, torna-se uma base, um suporte para o ziguezague feminino. Ele eventualmente ouvirá de uma mulher o que Norah diz no filme: “Sempre tive a sensação de que posso lhe dizer qualquer coisa”. Tradução: “Com você, sinto que posso fazer qualquer coisa”. Ou, em uma tradução mais ampla, “Sua postura me faz acreditar que nada nesse mundo lhe é estranho, que você está preparado e aberto para qualquer fenômeno que possa surgir, em mim ou ao meu redor. Você me dá segurança ao atravessar qualquer confusão com um sorriso malicioso nos olhos. Seus olhos, sua cama, sua vida, ah… Eu quero me deitar e me esfregar em você”.
A passagem do tempo não gera ansiedade. Ele fica além do tempo. Sua espera não é passiva. Ficar é uma forma de ação, um jeito de amar à distância, de respirar o ritmo do mundo. Ele, como um homem que dança, sabe que o começo às vezes só acontece no meio ou no fim. Ao amar o tempo da vida, sem saber, ele faz amor com a própria história dela, com seus percursos, idas e voltas. Isso porque é o tempo que nos move. Engana-se quem pensa que se move no tempo. Como ensinava o mestre zen Dogen, “a primavera passa sem nada fora de si mesma”.
Amar, se identificar, se tornar o tempo. Eis a forma mais elevada de condução. E toda história de amor é uma descrição de uma condução e uma entrega. Sempre. Jude Law, mesmo à distância, orienta e conduz Norah. Afinal, não basta ser um Jude Law, tem de saber conduzir. Caso contrário, você lembra o que aconteceu com ele em Closer, não? ;-)
Se a cantada funciona, se ela volta ou se vai para sempre, isso não importa. Assista ao filme e descubra…
Trailer
Além do trailer, deixo abaixo um trechinho da letra de Otis Redding, “Try A Little Tenderness” (ouça aqui), uma das faixas dessa excelente trilha que roda sem parar na minha playlist.
“but while she there waiting
try just a little bit of tenderness
[...]
all you got to do is know how to love her
you’ve got to
hold her
squeeze her
never leave her
now get to her
got got got to try a little tenderness
yeah yeah”
Filme: http://www.youtube.com/watch?v=gFwDOWMaH6I&eurl=http://nao2nao1.com.br/as-melhores-cantadas-do-cinema-1-um-beijo-roubado/
P.S: Já decidi quem vai ganhar o livro da Maitê. Vou fazer um post com os melhores relatos e aí revelo a sortuda.
P.S. 2: Vocês, mulheres, se interessariam em ler sobre cantadas femininas também? Posso fazer uma lista híbrida, que tal?
Update: A B. me avisou que hoje é dia internacional do beijo. Que coisa louca… Publiquei o post sem saber!
Construa relações positivas em todas as direções. Ela vai querer ser uma delas, com certeza.
Continuo com o percurso que iniciei quando assisti ao filme Um Beijo Roubado (My Blueberry Nights, Kar Wai Wong, EUA, 2007). Como expliquei anteriormente, a idéia é buscar xavecos que não parecem xavecos, apresentar cantadas que não se restringem a um discurso ou uma ação específica. Ou seja, falar das melhores cantadas e xavecos do cinema.
Quando um xaveco é ouvido como xaveco, ele perde totalmente sua força. É como um pensamento que, em vez de nos dominar e nos levar a emoções, sensações e outros pensamentos, é simplesmente reconhecido como tal: um pensamento. Cantada que se oculta, é isso que envolve uma mulher. “Ars est celare artem“ (”a arte esconde a arte”), já ensinavam os primeiros latin lovers. Não é por acaso que os melhores momentos de uma música e de um filme acontecem quando esquecemos que estamos diante de uma produção artística.
O filme: uma praça, uma vida, um mundo
Leia tranquilo: o texto não tem spoilers pois é impossível estragar a experiência que esse filme oferece. Da trilha sonora, escolhi “ L’amore trasparente” (Ivano Fossati).
Caos Calmo (Antonio Luigi Grimaldi, Itália/Inglaterra, 2008, trailer no YouTube) é um dos mais belos filmes que já vi na vida. Após os créditos, fiquei com uma agitação simultânea a uma languidez contemplativa. Caos… calmo.
O roteiro toma como base o livro homônimo de Sandro Veronesi, a direção é de Antonello Grimaldi, e o elenco traz Nanni Moretti (O Quarto do Filho) e as belas Valeria Golino e Kasia Smutniak (que dá corpo a Jolanda, o alvo da cantada aqui descrita). O enredo é simples: após a morte da mulher, o empresário Pietro Paladini (vivido por Nanni Moretti) decide passar seus dias na praça em frente a uma escola infantil e faz sua vida acontecer em um banco de madeira de onde pode ver a filha.
A cantada: conquiste a praça, a vida e o mundo antes
Curiosamente, os protagonistas de Um Beijo Roubado e Caos Calmo se assemelham pela imobilidade. Se o primeiro esperou a personagem de Norah Jones voltar até sua loja, o segundo não sai da praça em frente à escola da filha. No momento em que qualquer um se fecharia em luto dentro de casa, Pietro sai para um local público por excelência; quando todos desejariam chorar e contar o drama da perda, ele ouve as dores alheias; se o bom senso ensina que o viúvo precisa de apoio, o empresário age como um louco ao apoiar seus amigos e familiares. Ele fica e deixa o caos girar ao redor: os familiares vem e vão, colegas do trabalho pedem conselhos, a mãe da amiga tenta seduzi-lo, a irmã de sua ex-mulher bate o carro, todas as coisas rodopiam dentro e fora da praça.
Aqui também se aplica a dinâmica que abordei no primeiro texto. A estabilidade masculina, o olhar de Shiva, é o convite perfeito para a provocação feminina, o strip-tease de Shakti. Pode anotar: o homem é desequilibrado pelo movimento feminino, enquanto a mulher é desestabilizada pelo olhar masculino. Se quiser envolver uma mulher, pare e fique. Se quiser conquistar um homem, seja uma coelhinha serelepe. Não é de se estranhar que um homem muito solto, que se mexe demais, seja visto como homossexual (veja os primeiros segundos dessa apresentação, uma das músicas do filme, que explicita a feminilidade de Rufus Wainwright, músico gay).
É outra, contudo, a grande cantada de Pietro em Caos Calmo. Nenhum momento a circunscreve, nenhuma fala a define, não há gestos para evidenciá-la. Inicialmente, o empresário toca a sua própria vida, dispensa distrações e mergulha na beleza do cotidiano. Troca o estresse de um escritório pelo vinho de um bom restaurante, reuniões com empresários por conversas com mulheres fofoqueiras, luto depressivo por contação de histórias infantis.
Com isso, ele não só descansa e ganha tempo para si como arranja tempo para os outros. Ele fica disponível. Eis o charme de um homem sentado em um banco de praça. Quando a irmã da ex-mulher bate o carro e começa a chorar, ele está lá para abraçá-la e fazê-la sorrir. Quando o menino passa querendo brincar, ele está lá para empolgá-lo. A filha treina ginástica olímpica, ele observa da arquibancada.
Com disponibilidade e olhar contemplativo, Pietro logo descobre a rotina de várias pessoas ao seu redor. O jornaleiro, o dono do restaurante, a menina linda que leva o cachorro para passear, as amigas da filha e seus pais… Porque ele pára e senta, seus colegas de trabalho (que vêm para consolá-lo) terminam por contar seus problemas, desabafar e pedir conselhos. Ele se torna o banco dos outros (e todos nós queremos bancos). Ao ouvir problemas, ele enxerga soluções e se insere na vida de cada um de modo a beneficiá-los. Sem sair da praça, recebe uma proposta de emprego irrecusável. Não é de se surpreender. O mundo inteiro se abre diante de um homem que oferece suas habilidades e pergunta em todas as direções: “Olá, em que posso ajudar?”.
Antes de abraçar Jolanda, Pietro já estava abraçando o mundo – algo que ela mesmo percebeu quando lembrou de todos os abraços que observou de longe. Antes de amá-la, ele já amava a todos. Antes de penetrá-la, ele já estava atravessando e enriquecendo muitas vidas dentro e fora da praça.
Ora, toda mulher sabe que será tratada do mesmíssimo jeito que seu parceiro trata qualquer outra pessoa. Já que a natureza do feminino é o movimento, ela observa como ele lida com tudo o que se move: como chama e agradece o garçom, como sorri (ou não) para quem passa ao redor, como resolve problemas, como brinca com um cachorro, como olha para uma borboleta…
Se ele se irrita facilmente, ela sabe que terá problemas nos dias de TPM. Se ele se apaixona por tudo e todos, ela deseja ser alvo de sua paixão. Se ele sabe dançar, ela fantasia sobre como será o sexo. Se ele toma o vinho com tesão, ela quer provocar o mesmo. Se ele não come brócolis ou não gosta de sashimi, ela desconfia que seu mimo o impedirá de se deliciar com outras coisas também. Se ele oferece suas habilidades ao mundo, ela naturalmente entra na fila para recebê-las e usufrui-las também. “Se ele faz tanta gente feliz, ele me fará feliz”.
Sem sequer saber o nome dela, sem nenhuma conversa, Pietro conquista a mulher mais bonita do local apenas por direcionar a sua própria vida e se relacionar positivamente com os outros. Em vez de tentar seduzi-la diretamente, ele manifesta uma motivação mais ampla. Ele não quer apenas sua própria felicidade ou tampouco fazê-la feliz. Ele quer a felicidade de todos.
Nessa praça construída por Pietro, qualquer mulher não só já está abraçada como deseja abraçar de volta, participar desse desejo, ser olhada de modo elevado e se relacionar com outros assim também.
Portanto, meu amigo, se quiser pegar mulher, apenas se preocupe em sentar no banco e cuidar da vida da praça. Em vez de correr atrás de gaúchas ou goianas, em vez de se perguntar o que o mundo tem a lhe oferecer, brinque com cachorros, faça a mulher mais próxima sorrir, vá todo santo domingo abrir a sala de meditação e ficar 40 minutos sentado contra a parede, leia histórias infantis para seu sobrinho, limpe sua rua, tire o lixo, distribua bombons no metrô, alinhe sua coluna, ajude seus amigos, lave a louça no fim do churrasco familiar, respire árvores e construa o mundo no qual deseja se deitar com sua mulher.
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