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Sonetos

96

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei, mas se me alguém pergunta: -- Quando? --
Não sei, que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças.
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças,
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

97

Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia,
Posto que dá princípio ao claro dia,
Posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava,
Que só por ela tudo enjeitaria,
Deseja de atentar se lhe acharia
Tão firme fé, como nele achava:

Mudado o trajo, tece o duro engano,
Outro se finge preso, põe diante:
Quebra-se a fé mudável e consente,

Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante,
Para que sempre seja descontente!

98

Sentindo-se tomada a bela esposa
De Céfalo no crime consentido,
Para os montes fugia do marido
E não sei se de astuta ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
De amor cego e forçoso compelido,
Após ela se vai como perdido,
Já perdoando a culpa criminosa.

Deita-se aos pés da Ninfa endurecida
Que do cioso engano está agravada;
Já lhe pede perdão, já pede a vida.

Oh, força de afeição, desatinada,
Que da culpa contra ele cometida,
Perdão pedia à parte que é culpada!

99

Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Ontem vi posto em grau tão excelente,
Que vós, que sois inveja a toda a gente,
Só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado,
Que já vos fez, contente e descontente,
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez ao ar sereno e sossegado.

Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
Ninguém diria em muitas. Eu só, cego,
Magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna e o Moço cego:
Um, porque os corações obriga a tanto;
Outra, porque os estados desiguala.

100

O céu, a terra, o vento sossegado,
As ondas, que se estendem pela areia,
Os peixes, que no mar o sono enfreia,
O noturno silêncio repousado.

O pescador Aônio, que, deitado
Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado.

-- Ondas -- dizia -- antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

101

Erros meus, má fortuna, amor ardente,
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei, mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos,
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh, quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

102

Cá nesta Babilônia, donde mana
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá onde o mal se afina e o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a desengana;

Cá neste labirinto, onde a nobreza,
Com esforço e saber pedindo vão
Às portas da cobiça e da vileza;

Cá neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!

103

Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram,
Intratável se fez o vale, e frio;

Passou o Verão, passou o ardente Estio,
Umas cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida,
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.

104

Despois que viu Cibele o corpo humano
Do fermoso Átis seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorou seu grave dano.

E fazendo a sua dor ilustre engano,
A Júpiter pediu que o verdadeiro
Preço da nova palma e do loureiro
Ao seu pinheiro desse, soberano.

Mais lhe concede o filho poderoso:
Que as estrelas, subindo, tocar possa,
Vendo os segredos lá do Céu superno.

Oh, ditoso Pinheiro! Oh, mais ditoso
Quem se vir coroar da folha vossa,
Cantando à vossa sombra verso eterno!

105

Na desesperação já repousava,
O peito longamente magoado,
E, com seu dano eterno concertado,
Já não temia, já não desejava,

Quando uma sombra vã me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão fermosa imagem, que o traslado
Na alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente
O coração àquilo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh, deixem-me enganar, que eu sou contente!
Que, posto que maior meu dano seja,
Fica-me a glória já do que imagino.

106

Senhora minha, se a Fortuna imiga,
Que em minha fim com todo o Céu conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga,

Comigo levo esta alma, que se obriga,
Na mor pressa de mar, de fogo, de ira,
A dar-vos à memória que suspira
Só por fazer convosco eterna liga.

Nesta alma, onde a Fortuna pode pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome
Vos não possam tirar, nem vãos perigos.

Antes co som da voz, trêmulo e rouco,
Bradando por vós, só com vosso nome
Farei fugir os ventos e os imigos.

107

Árvore, cujo pomo belo e brando
Natureza de leite e sangue pinta,
Onde a pureza, de vergonha tinta,
Está virgíneas faces imitando,

Nunca da ira e do vento, que arrancando
Os troncos vão, o teu injúria sinta,
Nem por malícia de ar te seja extinta
A cor, que está teu fruito debuxando.

Que pois me emprestas doce e idôneo abrigo
A meu contentamento, e favoreces,
Com teu suave cheiro minha glória,

Se não te celebrar como mereces,
Cantando-te, sequer farei contigo
Doce, nos casos tristes, a memória.

108

Por cima destas águas, forte e firme,
Irei por onde as sortes ordenaram,
Pois por cima de quantas me choraram
Aqueles claros olhos pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me,
Já mil impedimentos se acabaram,
Quando rios de amor se atravessaram,
A me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada e gloriosa
Faz o vencido já desesperado.

Em que figura, ou gesto desusado,
Pode já fazer medo a morte irosa,
A quem tem a seus pés rendido e atado?

109

O filho de Latona, esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
O hórrido Píton, brava serpente,
Matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente;
Nas Tessálicas praias, docemente,
Pela Ninfa Penéia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,
Ciência, diligências, nem respeito
De ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser que é mais que humano?

110

Presença bela, angélica figura,
Em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
Gesto alegre, de rosas semeado,
Entre as quais se está rindo a fermosura;

Olhos, onde tem feito tal mistura
Em cristal branco e preto marchetado,
Que vemos já no verde delicado
Não esperança, mas inveja escura;

Brandura, aviso e graça, que aumentando
A natural beleza c'um desprezo,
Com que, mais desprezada, mais se aumenta,

São as prisões de um coração que, preso,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a Sereia na tormenta.

111

Diversos dons reparte o Céu benino,
E quer que cada uma um só possua:
Assi, ornou de casto peito a Lua,
Ornamento do assento cristalino.

De graça, a Mãe fermosa do Menino,
Que nessa vista tem perdido a sua:
Palas de discrição, que imite a tua:
Do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos,
Em respeito do Autor da natureza;

Que a seu pesar te dão, fermosa Dama,
Diana honestidade, e graça Vênus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

112

Tal mostra dá de si vossa figura,
Sibila, clara luz da redondeza,
Que as forças e o poder da Natureza
Com sua claridade mais apura.

Quem viu uma confiança tão segura,
Tão singular esmalte da beleza,
Que não padeça mais, se ter defesa
Contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
Que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas relíquias da vida, que escaparam.

113

A Morte, que da vida o nó desata,
Os nós que dá o Amor cortar quisera
Na Ausência, que é contra ele espada fera,
E co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que uma a outra mata,
A Morte contra o Amor ajunta e altera,
Uma é Razão contra a Fortuna austera,
Outra contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
A Morte, em apartar dum corpo a alma;
Duas num corpo o Amor ajunte, e una;

Porque assi leve, triunfante, a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
Do Tempo, da Razão e da Fortuna.

114

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado,
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busquem riquezas e honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma,

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido, eternamente,
Vosso fermoso gesto dentro n'alma.

115

Sempre a Razão vencida foi de Amor,
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da razão.
Ora que caso pode haver maior?

Novo modo de morte e nova dor,
Estranheza de grande admiração
Que perca suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor!

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é razão, mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

116

Que modo tão sutil da Natureza!
Para fugir ao mundo e seus enganos,
Permite que se esconda em ternos anos,
Debaixo de um burel tanta beleza!

Mas não pode esconder-se aquela alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a, ou trazendo-a na memória,
Na mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,
Cativo há-de ficar, que Amor ordena
Que de juro tenha ela esta vitória.

117

Seguia aquele fogo que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
As forças lhe faltavam já e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,
Não esmorece, mas no pensamento,
(Que a língua já não pode) seu intento
Ao mar que lho cumprisse encomendava.

-- Ó mar (dizia o moço só consigo),
Já te não peço a vida, só queria
Que a de Hero me salves, não me veja.

Este meu corpo morto, lá o desvia
Daquela torre, sê-me nisto amigo,
Pois no meu mor bem me houveste inveja.

118

Dos Céus à Terra desce a mor Beleza,
Une-se à carne nossa e fá-la nobre
E, sendo a humanidade dantes pobre,
Hoje subida fica à mor alteza.

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza,
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre
E por elas o mesmo Céu despreza.

Como Deus em pobreza à terra desce?
O que é mais pobre tanto lhe contenta,
Que só rica a pobreza lhe parece?

Pobreza este Presépio representa,
Mas tanto por ser pobre já merece,
Que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.

Sonetos da edição de 1616

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