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Sonetos escolhidos das edições posteriores (1668, 1685 e 1861)

120

De quantas graças tinha, a Natureza
Fez um belo e riquíssimo tesouro,
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rostro as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve, em que a alma tenho acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.



121 Vencido está de Amor meu pensamento,
O mais que pode ser, vencida a vida,
Sujeita a vos servir instituída,
Oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento
Ou hora em que se viu também perdida,
Mil vezes desejando a tal ferida
Outra vez renovar seu perdimento.

Com esta pretensão está segura
A causa que me guia nesta empresa,
Tão sobrenatural, honrosa e alta,

Jurando não seguir outra ventura,
Votando só por vós rara firmeza,
Ou ser no vosso amor achado em falta.



122


Indo o triste Pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Tais queixas espalhava ao leve vento
Cum brando suspirar da alma saído:

A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento
Que onde mais chamo sou menos ouvido?

Ó bela Ninfa, porque não respondes?
Por que o olhar-me tanto me encareces?
Por que queres que sempre me querele?

Eu, quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co mal cresce a causa dele.

123

Este amor que vos tenho, limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso ou duro Fado,
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa,
Tudo por terra o Inverno e Estio deita,
Só para meu amor é sempre maio;

Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

124

Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
Para fazerdes esse áureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De que escondida mina, ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz febeia,
Esse respeito de um Império dino,
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas orientais,
Que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal como quisestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

125

A fermosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do Sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos of'rece,
Me está (se não te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece,
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias mor tristeza.

126

Num tão alto lugar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo,
Que desfalece nele inda o desejo,
Vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixeza em mim conheço,
Acho que cuidar nele é grão despejo,
E que morrer por ele me é sobejo
E mor bem para mim do que mereço.

O mais que natural merecimento
De quem me causa um mal, tão duro e forte
O faz que vá crescendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque, inda que este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita honora.

127

Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Para que sinta mais o mal presente,
Deixai-me (se quereis) viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver (como se vê) tão descontente,
Venha (se vier) o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois tanto dano faz ao pensamento.

Assi que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há de ser sempre em tormento.

128

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza,
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança;

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

129

Se de vosso fermoso e lindo gesto
Nasceram lindas flores para os olhos,
Que para o peito são duros abrolhos,
Em mim se vê mui claro e manifesto:

Pois vossa fermosura e vulto honesto,
Em os ver, de boninas vi mil molhos;
Mas, se meu coração tivera antolhos,
Não vira em vós seu dano o mal funesto.

Um mal visto por bem, um bem tristonho,
Que me traz elevado o pensamento
Em mil, porém diversas, fantasias,

Nas quais eu sempre ando e sempre sonho,
E vós não cuidais mais que em meu tormento,
Em que fundais as vossas alegrias.

130

Doce sonho, suave e soberano,
Se por mais longo tempo me durara!
Ah! Quem de sonho tal nunca acordara,
Pois havia de ver tal desengano!

Ah! Deleitoso bem! Ah! Doce engano!
Se por mais largo espaço me enganara,
Se então a vida mísera acabara,
De alegria e prazer morrera ufano!

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
Dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui mofino.

131

Ah, minha Dinamene! assi deixaste
Quem não deixara nunca de querer-te?
Ah, Ninfa minha! Já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam estas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te somente a dura Morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Oh mar, oh Céu, oh minha escura sorte!
Que pena sentirei, que valha tanto,
Que ainda tenho por pouco o viver triste?

132

Quando se vir com água o fogo arder,
E misturar co dia a noite escura,
E a terra se vir naquela altura
Em que se vêem os Céus prevalecer;

O Amor por Razão mandado ser,
E a todos ser igual nossa ventura,
Com tal mudança vossa fermosura,
Então a poderei deixar de ver.

Porém, não sendo vista esta mudança
No mundo (como claro está não ver-se),
Não se espere de mim deixar de ver-vos;

Que basta estar em vós minha esperança,
O ganho de minha alma, e o perder-se,
Para não deixar nunca de querer-vos.

133

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso;
Quem o contrário diz não seja crido:
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens e inda aos deuses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de amor;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.

134

Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em que está seu próprio dano.

Na incerta vida estribam de um humano;
Dão crédito a palavras que são ventos;
Choram depois as horas e os momentos
Que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
Entende que o viver é de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquelas esperanças
Que duram para sempre com o amado.

135

Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agora se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aônia bela,
E abraso-me, por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

136

Olhos fermosos, em quem quis Natura
Mostrar do seu poder altos sinais,
Se quiserdes saber quanto possais,
Vede-me a mim, que são vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura,
No que eu padeço retratada estais,
Que, se eu passo tormentos desiguais,
Muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:
Ser vosso; e só de ser vosso me arreio,
Porque o vosso penhor em mim se assele.

Não me lembro de mim quando vos vejo,
Nem do mundo, e não erro, porque creio
Que em lembrar-me de vós cumpro com ele.

137

Criou a Natureza damas belas,
Que foram de altos plectros celebradas;
Delas tomou as partes mais prezadas
E a vós, Senhora, fez do melhor delas.

Elas diante vós são as estrelas
Que ficam com vos ver logo eclipsadas;
Mas, se elas têm por Sol essas rosadas
Luzes de Sol maior, felices elas!

Em perfeição, em graça e gentileza,
Por um modo, entre humanos, peregrino,
A todo o belo excede essa beleza.

Oh! Quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vale ante vós, de vós sou dino.

138

Uma admirável erva se conhece
Que vai ao Sol seguindo, de hora em hora,
Logo que ele do Eufrates se vê fora,
E quando está mais alto, então floresce.

Mas quando ao Oceano o carro desce,
Toda a sua beleza perde Flora,
Porque ela se emurchece e se descora;
Tanto co'a luz ausente se entristece!

Meu Sol, quando alegrais esta alma vossa,
Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,
Cria flores em seu contentamento;

Mas logo em não vos vendo, entristecida,
Se murcha e se consume em grão tormento,
Nem há quem vossa ausência sofrer possa.

139

O dia em que eu nasci, moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas, pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desventurada que se viu!

Luis Carlos de Camões

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