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Pan do Rio: Pandemônio - Parte 2

Nesta segunda parte do artigo (a primeira está disponível aqui), o foco são as relações entre a mídia gorda e o Pan (Rio 2007). Ao final há uma lista de leituras recomendadas, todas elas importantes para a escrita deste texto.

Mídia gorda e Pan: tudo, menos jornalismo

No futuro, quem vier a estudar a cobertura do Pan-Americano do Rio de Janeiro realizada pela mídia burguesa se colocará frente a um objeto que, embora apresente a si mesmo como jornalismo, está mais próximo do marketing, da promoção de eventos, da publicidade e propaganda, da troca de interesses ou, se quisermos usar um termo mais popular, do jabá. Os problemas são muitos. Cinco estão listados abaixo.

Primeiro, superestima o evento, dando-lhe uma importância que, de fato, não tem. (Este ponto foi desenvolvido na parte 1 do texto.)

Segundo, numa manobra política e de marketing em curso há bastante tempo, transforma um evento organizado e sediado em uma cidade, o Rio de Janeiro, no “Pan do Brasil”. As edições anteriores são e sempre foram corretamente intituladas Pan de Santo Domingo, Pan de Winnipeg, Pan de Havana, Pan de São Paulo etc. Só o do Rio de Janeiro não é Pan do Rio. Esta jogada de marketing incorporada propositalmente pelo jornalismo se presta a diversos objetivos. Do ponto de vista político, ajuda a justificar a montanha de dinheiro gasta pelo governo federal. A contrapartida para o resto do Brasil é poder ver de perto algum atleta carregando a tocha que perambulou pelo país, de maneira a engajar os brasileiros como se fossem responsáveis por uma competição cuja sede é a cidade do Rio de Janeiro. Na verdade, os brasileiros são responsáveis: sua única responsabilidade é pagar a conta, sem terem sido consultados a respeito.

O nome fantasia “Pan do Brasil” serve também para atrair o interesse e audiência do restante do país. A mídia gorda, sobretudo emissoras de televisão e rádio, faturou horrores vendendo cotas de patrocínio da cobertura. Portanto, precisam promover o Pan, dando-lhe enorme destaque e rezando para que as transmissões ao vivo e programas tenham bastante audiência. Como sabemos (mas a mídia gorda omite), o negócio dos veículos de comunicação burgueses (incluindo o jornalismo) é vender a atenção do público aos anunciantes. É preciso convencer as pessoas de que devem ficar grudadas na frente da televisão pelo maior tempo possível, não só torcendo para os atletas brasileiros, mas se sentindo parte da organização e do sucesso do “Pan do Brasil”.

Terceiro, omite o flagelo social causado pelo Pan. Este problema é tão grave que foi desmembrado nos itens a, b e c.

a) Morte de trabalhadores

Pelo menos um operário que trabalhava na construção da Vila Panamericana morreu atropelado. Não havia passarela ou sinal de trânsito que permitisse a travessia de pedestres. Só após um ruidoso protesto dos trabalhadores, fechando os dois sentidos da via, a Prefeitura construiu uma passarela no local.

Paradoxalmente, as obras da vila foram foram financiadas com recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Tendo Ronaldinho Gaúcho como garoto-propaganda da campanha de vendas, as unidades rapidamente se esgotaram. Após o evento, virará um condomínio de luxo. O mundo dos negócios considerou a operação “um feito memorável“.

O uso de verbas do fundo para um empreendimento deste tipo é, no mínimo, indevido. O artigo 10 da Lei 7.998/90, que institui o FAT, diz o seguinte: é “destinado ao custeio do Programa do Seguro-Desemprego, ao pagamento do abono salarial e ao financiamento de programas de desenvolvimento econômico“.

Seria irônico, se não fosse trágico: dinheiro público do Fundo do Amparo ao Trabalhador financia construção de imóveis de classe alta e o operário morre atropelado tentando chegar ao local de trabalho. Boletim do deputado estadual Marcelo Freixo definiu a Vila Pan-Americana como resultado da “indústria imobiliária atrás de lucros, uma obra que não será usada para amenizar o déficit habitacional e a perversa especulação imobiliária. Nos jogos Pan-americanos de Havana, os trabalhadores que construíram a Vila ficaram com os apartamentos após o evento.“

Houve ainda pelo menos uma morte por acidente de trabalho na construção no Estádio João Havelange (Engenhão).

A divulgação e repercussão das mortes na mídia gorda foi quase nula. É provável que diversos outros acidentes de trabalho tenham ocorrido, sabe-se lá com que conseqüências, sem que o “jornalismo” da mídia gorda tenha se interessado em torná-los públicos.

(Sobre a Chacina do Pan, matança de trabalhadores promovida em 27 de junho último, ver o item “c”.)

b) Privatização de espaços públicos

As propostas de descaracterizar e privatizar parte do Aterro do Flamengo e da Marina da Glória só não foram à frente porque houve mobilização da sociedade. Além de trazer escassos benefícios concretos à população, o financiamento público serviu a interesses privados.

c) Perseguição, segregação e remoção de comunidades pobres

Moradores de áreas da Zona Oeste foram expulsos de suas casas. Segundo Miguel Baldez, em contundente artigo, “terrorismo seria a expressão adequada para qualificar as ações da prefeitura“.

Há numerosas críticas quanto às intervenções (com problemas na concepção, na realização e nos resultados que trouxeram, estão trazendo e ainda trarão) no espaço urbano realizadas em nome do Pan. Uma página dentro do sítio do Comitê Social do Pan reúne textos com vários argumentos colocando em xeque a idéia de que “o Pan traz benefícios para a cidade”, repetida sem parar pela mídia gorda, pelos políticos e pelo comitê organizador. Em boa parte dos casos, a realização dos jogos é uma desculpa para a adoção de iniciativas que beneficiam empresas do setor imobiliário e prejudicam a população. Contra isso, moradores do Canal do Anil, realizaram, com o apoio de movimentos sociais, um protesto no dia Primeiro de Maio.

Notícia divulgada pela Agência Notisa informa que, “apesar do alto investimento (…) pesquisa realizada pelo Observatório de Favelas junto a comunidades carentes concluiu que os entrevistados consideram que o Pan-Americano não permite sequer ‘a participação devida da população’.”

Tem havido, também, remoção da população que vive em calçadas, praças e outros espaços, prática ocorrida durante a Rio 92. De acordo com Sandra Ribeiro, da ONG Justiça Global, entre os conflitos sociais acirrados pelo Pan estão “a retirada dos moradores de rua das vias públicas já verificada, (…) restrição de deslocamento de comunidades próximas aos locais dos jogos onde será exigido credenciamento“.

A segregação entre os diferentes corpos que circulam e circularão pela cidade é muito bem apontada em belo artigo da irmã Gloria Josefina Viero: “O Pan ritualiza uma sociedade de classes, naturalizando a divisão entre os corpos: aos corpos dos deuses e romeiros, toda segurança, beleza e esplendor do templo Cidade Maravilhosa; aos corpos dos jovens destinados ao sacrifício, a insegurança das favelas, o controle dos albergues, a tortura das prisões e a escuridão do cemitério. A uns, toda honra e louvação; a outros, toda injúria e condenação.“

A Chacina do Pan, ocorrida em 27 de junho, coroou a política de perseguição e extermínio da população pobre com o objetivo de “limpar” a cidade para a realização dos jogos. Embora traficantes e inocentes tenham sido executados, a ação foi considerada um sucesso pelo governo do Estado e pela mídia gorda, que a apresentou de forma espalhafatosa.

Quarto, omite o gasto desvairado, ilegal, irresponsável e pouco útil de dinheiro público.

Segundo o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ), um dos relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU) lista, entre outros indícios, “pagamento direto a empresas subcontratadas, provável existência de duplicidade de orçamentação, superfaturamento nos custos das obras, erros na planilha de custos e cronograma de trabalho, execução de serviços sem prévia licitação, ausência de fiscalização no cumprimento do contrato, pagamento antecipado de serviços“.

Isso para não falar na incompetência dos organizadores. O próprio TCU, em seu informativo, criticou o atraso das obras:

“O atraso descumpre cláusula do acordo de responsabilidades, assinado em 2002, que determinava que todas as instalações necessárias aos jogos deveriam estar em condições de uso e previamente testadas pelo menos 90 dias antes da abertura. De acordo com o ministro Marcos
Vinicios Vilaça, relator do processo, a situação deve-se ao fato de as instalações e a infra-estrutura do projeto terem sido superdimensionadas.“

Segundo reportagem veiculada na Voz do Brasil meses atrás, o próprio ministro, após avaliar um dos relatórios entregues pela comissão organizadora, declarou que, se fosse cumprir a lei, mandaria embargar as obras e o Pan não seria realizado. Porém, por questão de patriotismo (sic), permitiria que continuassem.

Segundo o informativo do tribunal, o relatório apontou ainda numerosas outras falhas nos preparativos para o evento, entre elas na segurança das informações:

“Segundo o relatório, o Primary Data Center (PDC), onde se localizam os principais servidores dos sistemas, que deveria ser um local seguro e disponível, foi reprovado no teste
realizado.“

O historiador Mário Maestri foi mais um a apontar o absurdo de gastos tão grandes realizados para benefício de poucos:

“Apesar dos milhões de desassistidos no Rio de Janeiro, as autoridades públicas optaram em investir recursos bilionários na organização dos jogos Pan-americanos, certos que produzirão retorno político e econômico para os grupos políticos e empresariais que dominam a administração pública regional.“

Quinto, omite os problemas relacionados à própria cobertura “jornalística”.

Em parte dos casos acima, houve notas ou matérias relatando os problemas (a Folha de S. Paulo merece menção a respeito). Foram a exceção que confirma a regra e logo caíram no esquecimento, esmagadas pelo clima de euforia da cobertura “jornalística” dos jogos, que tem muito de promoção de eventos e quase nada de jornalismo. Há centenas, talvez milhares de exemplos disso. Seria monótono listá-los e discuti-los aqui. A análise poderia render bons trabalhos acadêmicos de graduação, mestrado e doutorado. Fica a dica para quem quiser se aventurar. Abaixo vai um exemplo.

* * *

Matéria da revista Época (ed. 464, 9/4/07), assinada por Roberto Guimarães, termina com a seguinte afirmação:

“Não deixa de ser inspirador, no entanto, considerar que já organizamos um Pan antes - e o resultado, naquela época, mostrou ao mundo que o Brasil era capaz de sediar competições esportivas de alto nível.”

Será? Deve ser por isso que, desde então, poucos foram os eventos esportivos relevantes realizados no país. Fifa e COI, por exemplo, não o escolheram para sediar Copa do Mundo e Olimpíada. Para efeito de comparação: só o México sediou duas Copas do Mundo desde então.

A matéria, sobre o Pan de São Paulo, traz, portanto, duas falácias repetidas intensamente nas reportagens, notas, informes, boletins e comentários sobre o Pan do Rio publicados ou emitidos pela mídia gorda:

a) O Pan traz reconhecimento internacional. Não, não traz. Se “internacional” é na América, até pode ser. Nos outros continentes, não.

b) Se um Pan der certo, outros eventos vêm. Não, não vêm.

Logo abaixo da matéria, os logotipos dos patrocinadores oficiais: Caixa, Petrobras, Sadia, Olympikus, Sol e Oi. Com as cotas de patrocínio vendidas a alto preço, a mídia gorda tem que tornar (e tornará) a competição um sucesso - não importa o que acontecer -, de maneira que os patrocinadores tenham retorno, através da exibição da marca e da associação da mesma com o evento.

* * *

No fim de maio, a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a instalação de uma CPI do Pan. A notícia foi praticamente ignorada pela mídia gorda (como, de resto, outras CPIs da Câmara, como a CPI da merenda, que apontou prejuízos aos cofres públicos municipais nos contratos realizados pela prefeitura de Cesar Maia, do PFL. Se fosse do PT…).

Num gesto que deveria ter recebido divulgação ampla, para que toda a população tomasse conhecimento, a instauração da CPI foi adiada para agosto a pedido dos vereadores Nadinho de Rio das Pedras (PFL/DEM), Carlo Caiado (PFL/DEM), Patrícia Amorim (PSDB) e Luiz Antônio Guaraná (PSDB), pois “a investigação neste momento poderia prejudicar o andamento do Pan“. Pelo que se percebe, a prioridade é realizar o evento e atender a todos os interesses comerciais envolvidos. Os cofres públicos e a população que se danem. A democracia e o interesse público, nem se sabe onde foram parar. A mídia gorda, grande interessada no “andamento” e no “sucesso” do evento, mais uma vez calou-se.

Para se ter idéia do quanto a situação é bizarra, até o Pravda, jornal russo, reproduziu no dia seguinte (6/5/2007) uma reportagem de Nestor Cozetti publicada no sítio da Rejanorp (Rede Nacional de Jornalistas Populares), intitulada “Pan-Americano: preparação com remoções e suspeita de corrupção“.

* * *

O Pan que arromba as portas da cidade é mais uma evidência de que temos uma República por fazer. Estamos em 2007 e continua o uso de dinheiro e de instituições públicas para promover interesses e lucros privados. Tudo em nome do esporte, da alegria e do patriotismo. Enquanto isso, a mídia gorda posa de defensora do interesse público, mas não divulga a maior parte das falcatruas - inclusive aquelas em que ela própria está envolvida.

* * *

Leituras recomendadas

Abaixo está uma pequena amostra da relevante e abrangente discussão existente sobre o Pan e seus problemas, do ponto de vista da maioria da população do Rio de Janeiro. Longe de esgotar a quantidade e qualidade de vozes, o objetivo é divulgar e fazer justiça às fontes consultadas neste texto (escrito entre janeiro e julho de 2007) e mostrar que, como o leitor atento poderá perceber, as pessoas, órgãos e movimentos que os produziram são muito diferentes daqueles que aparecem na mídia gorda quando o assunto é o mesmo: o Pan. Abaixo estão manifestações de defensores da democracia, da participação popular e do interesse público. Nas grandes empresas de comunicação - na tela da TV, no rádio, nos jornais e revistas, na internet -, fora uma ou outra exceção, o objetivo é muito diferente: puxação de saco e promoção de eventos para garantir negócios, audiência e lucros.

- Sítio do Comitê Social do PAN

- Blogue A verdade do Pan 2007

- “‘Chacina do Pan’ consolida agenda de criminalização e extermínio dos pobres“, entrevista de Vera Malaguti ao Correio da Cidadania

- “Os jogos pan-americanos e a cidade do Rio: contribuições?“, por Victor Andrade de Melo

- Outro texto de Carta Capital sobre o saco sem fundo das obras do Pan

- “O outro lado do Pan“, de Miguel Baldez, publicado no Jornal do Brasil

- Discurso do deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ) na Câmara dos Deputados em abril de 2007

- Edições de abril e maio Informativo do Tribunal de Contas da União (TCU) com acompanhamento das obras

- “Pandemônios do Pan“, sumário de absurdos do Pan publicado no sítio do dep. estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ)

- Manifesto “Pela preservação do Aterro do Flamengo e da Marina da Glória“, mandato do vereador Eliomar Coelho (PSOL/RJ)

- “PAN do Rio: crônica de um escândalo anunciado (2)“, por Antônio Carlos de Mello

- “O ritual dos corpos“, da irmã Gloria Josefina Viero

- “Pan-Americano: preparação com remoções e suspeita de corrupção“, de Nestor Cozetti, publicada no sítio da Renajorp e reproduzida pelo Pravda (Rússia)

- Movimento Esse mar é meu

- “Trabalhadores contra remoção“

- Entrevista de Sandra Ribeiro (Justiça Global) a Anselmo Massad (Revista Fórum) tratando, entre outros assuntos, da Chacina do Pan

- Numerosos textos e entrevistas sobre a atuação policial no Complexo do Alemão, culminando na Chacina do Pan estão indicados na série Alemão, Estado e “segurança pública” (I, II, III, IV, V) publicada neste blogue.

Tags: ética jornalística, democracia, esquerda, privatização, serviços públicos, sociedade, Violência

Forte: Rafael Fortes

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